O Termo “Guerra Pandêmica” para as Relações Internacionais

Com produto interno bruto (PIB) de grandes potências caindo em 6,8% ¹ e 4.8% ² em um trimestre, um número como 150 mil mortos em apenas 3 meses, alta instabilidade política e uma nítida falta de solidariedade global, o atual cenário internacional está sendo chamado por alguns como “guerra pandêmica”. Juntando estes dados empíricos a um dos pensamentos da teoria realista das Relações Internacionais de que, por ser um sistema anárquico o interesse egoísta dos Estados é o que organiza racionalmente as relações ³, o termo “guerra” ao se tratar da pandemia atual do Coronavírus realmente não parece absurdo.

É fato que o cenário desta “guerra” não se adequaria aos anteriores, os quais são objeto dos teóricos realistas. Não há múltiplos e diretos ataques entre nações, não há intenção de matar indivíduos, por parte das forças militares dos países, todos possuem o mesmo “rival” e o objetivo final não é o aniquilamento do outro Estado, mas sim de um inimigo comum, o vírus. Entretanto, ainda se observa elementos que são comuns às guerras tratadas pelos realistas, como as relações hostis criadas pelo egoísmo, a falta de cooperação solidária e medidas de austeridade econômicas.

Expresso por diversos acontecimentos, seja por uma contínua corrida armamentista biotecnológica pela vacina - uma vez que os países desejam com ela primeiro produzir o suficiente apenas para sua população - ou por “desvios” de equipamentos ⁴ direcionados a certos países, o interesse egoísta mostra-se extremamente presente durante a pandemia, organizando racionalmente as relações como conflitivas. Somado a isso, ações estadunidenses como a saída da Organização Mundial da Saúde (OMS) e a abertura de uma investigação que supostamente indicaria a China como portadora de uma arma biológica ⁵ apontam para a falta de intenções de cooperação, intensificando ainda mais o clima hostil. E finalmente, na economia o cenário também não diverge muito daquele conflitivo, reforçando o que avalia o pensamento realista, com acontecimentos que vão desde medidas de austeridade como uma proposta de emenda à constituição (PEC) do “orçamento de guerra” até uma queda histórica de PIB.

Mesmo o cenário não sendo de uma tradicional guerra, estaria então correto utilizar o termo “guerra pandêmica” referindo-se ao atual momento? Se sim, então a avaliação deste cenário pelas relações internacionais seria adequado classificar no paradigma , realista? O uso de expressões militares reforçam o papel do Estado juntamente com a necessidade de estratégias estatais . A partir disso, ainda no âmbito das argumentações dos teóricos realistas, pode-se apresentar o pensamento de Carl von Clausewitz (realista político) de que a guerra seria justamente a continuação da política por outros meios ⁶, e consequentemente, não estaríamos colocando uma crise de saúde global como um outro meio de disputa de poder entre nações que apenas aumenta rivalidades políticas já existentes? Esta discussão será interessante para o campo, em especial futuramente, quando estudos sobre a pandemia atual forem publicados.

Além da importância do termo para o estudo da situação atual no campo das relações internacionais, a análise do uso do mesmo também pode ser instrumental para a compreensão de suas consequências imediatas. O termo “guerra” supõe a necessidade de um adversário a ser enfrentado, e embora possa aparentar óbvio para a grande maioria de que o adversário nesse momento seria a COVID-19, alguns líderes caminham em um sentido diferente. A recente fala da Conselheira Sênior do governo Trump - Kellyanne Conway - de que esta seria a COVID-19 e não a COVID-1 ⁷ e de que os responsáveis pela OMS já deveriam ter resolvido a situação pois supostamente já lidaram com os outros 18 vírus, demonstra, além de um drástico erro, a necessidade norte-americana de encontrar um culpado para que possam justificar suas atitudes. Por exemplo gastam esforços na busca por um inimigo e em jogos políticos enquanto poderiam se concentrar em alternativas eficientes para encontrar uma solução compartilhada para esta situação.

A partir disso, para onde estaria caminhando a crise? Será que em algum momento chegar-se-á a situação tão aguda que os únicos agentes expostos ao ‘’conflito’’ será quem, por natureza, deve se expor em cenários extremos, os militares e toda a sua equipe de engenheiros, médicos e líderes, no lugar dos equivalentes civis? Já é possível ver um cenário próximo em alguns lugares do planeta. Em Brasília, vê-se soldados higienizando rua ⁸. A Rússia envia médicos militares em forma de ajuda para a Itália, em um contexto de omissão estadunidense perante seus aliados ⁹. Tais fatos mostram a mobilização das forças armadas em diversos setores e como agente que tem sua projeção de atuação em ascensão. Em posteriores publicações trataremos desta atuação.

Referências Bibliográficas

ARON, Raymond. Paz e guerra entre as nações. Trad. do original Paix et guerre entre lês nations. Paris. Éditions Calmann-Lévy, 1962. Publicado pela Edit. UnB, 1979.

Com pandemia, economia da China encolhe 6,8% no 1º trimestre, primeira queda da série histórica. Disponível em: https://g1.globo.com/economia/noticia/2020/04/16/pib-na-china-tem-primeira-contracao-desde-1976.ghtml. Acesso em: 16 abr. 2020.

Convoy con médicos militares rusos parte hacia la ciudad italiana de Bérgamo para ayudar a luchar contra el covid-19. Disponível em:https://www.brasil247.com/mundo/russia-envia-medicos-militares-a-cidade-italiana-de-bergamo-para-ajudar-a-combater-o-coronavirus. Acesso em: 20 abr. 2020.

Coronavírus: EUA são acusados de 'pirataria' e 'desvio' de equipamentos que iriam para Alemanha, França e Brasil. Disponível em: https://g1.globo.com/mundo/noticia/2020/04/04/coronavirus-eua-sao-acusados-de-pirataria-e-desvio-de-equipamentos-que-iriam-para-alemanha-franca-e-brasil.ghtml. Acesso em: 04 abr. 2020.

Forças Armadas higienizam hospitais e ruas em Brasília. Disponível em: https://saude.estadao.com.br/noticias/geral,forcas-armadas-higienizam-hospitais-e-ruas-em-brasilia,70003258597. Acesso em: 20 abr. 2020.

Kellyanne conway's simply false spin on 'covid-19'. [s.l], 15 abr. 2020. Disponível em: https://edition.cnn.com/2020/04/15/politics/kellyanne-conway-covid-19-coronavirus/index.html. Acesso em: 15 abr. 2020.

PASSOS, Rodrigo Duarte Fernando dos. Clausewitz e a Política: uma leitura de da guerra. 2005. 122 f. Tese (Doutorado) - Curso de Pós-graduação em Ciência Política, Departamento de Ciência Política, Universidade de São Paulo, São Paulo, 2005. Disponível em: https://teses.usp.br/teses/disponiveis/8/8131/tde-02122008-161644/publico/TESE_RODRIGO_DUARTE_FERNANDES_DOS_PASSOS.pdf. Acesso em: 21 abr. 2020.

PIB dos EUA recua 4,8% no 1º trimestre sob impacto do coronavírus. Disponível em: https://economia.estadao.com.br/noticias/geral,pib-dos-eua-recua-4-8-no-1-trimestre-sob-impacto-do-coronavirus,70003286944. Acesso em: 29 abr. 2020.

Trump: EUA investigam se coronavírus escapou de laboratório na China. Disponível em: https://exame.abril.com.br/mundo/trump-eua-investigam-se-coronavirus-escapou-de-laboratorio-na-china/. Acesso em: 16 abr. 2020.