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Cadernos LabRI/UNESP - Núm. 17 · ISSN 2764-7552

Os riscos da participação militar em crises

Por Lucas Quispe, Mayara Zorzo e Sofia Navarro

A discussão acerca das atribuições das Forças Armadas se coloca como essencial, especialmente durante o cenário em que nos encontramos, uma vez que os gastos com o setor militar ao redor do mundo atingiu a marca de U$ 1,73 trilhão em 2019...

A discussão acerca das atribuições das Forças Armadas se coloca como essencial, especialmente durante o cenário em que nos encontramos, uma vez que os gastos com o setor militar ao redor do mundo atingiu a marca de U$ 1,73 trilhão em 2019 - representando um aumento de 6,6% em relação ao ano anterior - e possuindo dois dos países mais acometidos pelo Novo Coronavírus - China e Estados Unidos - como os maiores contribuintes para o aumento desse orçamento. É evidente que tal esforço não é semelhante no âmbito da saúde pública, uma vez que o sistema norte-americano de saúde exclui cerca 30 milhões de indivíduos.

A atuação das Forças Armadas deve ser analisada não só em circunstâncias de guerras ou confrontos armados, mas também durante outras crises que possam envolver a segurança da população. No cenário brasileiro, os militares se mostram presentes em situações que podem demonstrar sua eficiência neste aspecto, como por exemplo, o trabalho realizado juntamente aos agentes da Defesa Civil de Minas Gerais no ingresso e na retirada de bombeiros e oficiais que trabalhavam no resgate da população acometida pela tragédia de Brumadinho. Mas essa atuação também pode ser controversa, possuindo como exemplo a intervenção federal realizada por militares no estado do Rio de Janeiro que até os dias atuais gera diversos questionamentos por não apresentar relatórios completos de suas operações e deixar sérias dúvidas acerca de sua real necessidade e eficácia.

Nesse ínterim, ao abordarmos as questões trazidas para o cenário gerado pelo Novo Coronavírus, o papel da referida instituição nacional é tido como indispensável, mas demanda determinado cuidado para análise e interpretação de suas competências. De acordo com o Ministério da Defesa, até o dia 22 de abril, 10 Comandos Conjuntos e 29 mil militares foram mobilizados para atuarem em todo território brasileiro na Operação COVID-19. O mesmo afirma que a operação é capaz de disponibilizar recursos operacionais e logísticos para o apoio às ações; além de auxiliarem no controle de fronteiras marítimas e aéreas; trabalharem na construção de novas unidades hospitalares e unidades especializadas na descontaminação de pessoas, ambientes e materiais; e também, fornecer auxílio em postos de triagem e hospitais de campanha.

Em outros lugares do mundo o auxílio militar também se vê evidente e importante. Na Itália, África do Sul e na Espanha soldados patrulham as ruas para garantir a ausência de aglomerações e forçar o isolamento social, na França os militares operam hospitais improvisados e na Alemanha e na Rússia, constroem grandes centros de tratamento. Porém, nos Estados Unidos, apesar de já haver participação militar no combate à doença, como o uso de navios da U.S. Navy para tratar pacientes a bordo, vê-se um caso curioso em relação a participação dessa classe nos esforços para frear a pandemia, algo que provavelmente esteja contribuindo para o cenário atual dos EUA: há uma lei, o ‘’Ato 1878 Posse Comitatus’’, que proíbe a atuação formal do Exército, da Marinha e da Aeronáutica em território estadunidense, fato que leva o país a perder um potencial apoio das três forças. Neste apoio, inclui-se toda a experiência histórica do país em ações humanitárias e em intervenções - rápido apoio logístico, entrega de suprimentos e medicações por diversos meios, transporte de pacientes e corpos e construção de infraestrutura.

Entretanto, a atuação do Exército na segurança interna possui seus perigos mesmo nas nações que mais pregam a democracia, sendo o maior exemplo os Estados Unidos que, como mencionado anteriormente possuem um Ato para prevenir estas ameaças. Porém, o que torna-se cada vez mais evidente, é que, mesmo com estes perigos, as intervenções estão acontecendo e este limite expresso no Ato está se enfraquecendo cada vez mais, sendo dentro dos Estados Unidos exemplificada pela posição central dos militares no combate ao tráfico de drogas. Mesmo sendo um assunto essencialmente internacional, o país ao permitir a atuação do Exército dentro de estados norte-americanos estaria cruzando este limite. A questão, entretanto, não é se estaria correta ou não esta intervenção em um preciso momento, e, sim, se estaria correta a longo prazo. A amálgama forças militares com questões domésticas representaria uma força imbatível em uma autoridade política única, traço central em regimes ditatoriais e, quanto mais aberturas - mesmo que aparentemente mínimas - são feitas para esta participação militar, mais enfraquecido o limite democrático parece estar.

Atualmente, as autoridades políticas já possuem bastante poder em suas mãos e, neste período de pandemia, isso se mostra cada vez mais claro, com a invasão de dados privados e os sistemas de monitoramento por GPS, disponibilizados por redes sociais e companhias telefônicas, chamadas de tecnologias de vigilância. O problema encontra-se a longo prazo, quando mesmo com o vírus sob controle, estas tecnologias continuarem disponíveis às autoridades, o mesmo problema encontrado no auxílio militar caso avance para algo que interfira na democracia. Ao ampliar cada vez mais estes espaços de atuação militar, a aliança destes com as autoridades políticas somadas às tecnologias atuais pode ser fatal à democracia futura. Fica claro então, que as discussões acerca dos trabalhos das Forças Armadas se tornam delicados principalmente quando estão envolvidas questões que podem apresentar caráter decisório de cunho político, não importando o regime instituído no país. A ameaça à individualidade está presente em todos os países, em alguns com mais peso e em alguns ainda adormecida, por isso, mesmo em momentos tão críticos como o atual, é importante priorizar decisões reflexivas sobre resoluções estritamente problem-solving; um detalhado processo decisório que leva em conta opiniões acadêmicas é sempre mais eficiente a longo prazo, mesmo que não seja a mais rápida solução.

Referências Bibliográficas

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