População em situação de rua e a pandemia
Por Bruna de Souza, Diego Malvasio e Gabriela Araujo
A pandemia da Covid-19 é um acontecimento que modificou fortemente o cotidiano das pessoas e obrigou a sociedade a se moldar e mudar hábitos para conseguir passar por esse momento, em que o inimigo a ser combatido é invisível e atinge a todos em maior ou menor grau...
A pandemia da Covid-19 é um acontecimento que modificou fortemente o cotidiano das pessoas e obrigou a sociedade a se moldar e mudar hábitos para conseguir passar por esse momento, em que o inimigo a ser combatido é invisível e atinge a todos em maior ou menor grau. Além disso, a fácil transmissão do vírus, por meio do ar ou contato, seja físico ou secreções contaminadas, tornou a situação ainda mais preocupante; como resultado, a principal medida tomada em escala global foi o isolamento social, medida que se mostrou um fator transformador, pois além de afetar fatores econômicos e políticos, o isolamento obrigou os indivíduos a repensarem suas escolhas e relações sociais.
O isolamento social se mostrou eficiente no combate à disseminação do vírus, consequentemente evitando o aumento do número de contaminados. No entanto, quando falamos sobre o isolamento temos que olhar para aqueles indivíduos e grupos que vivem em situação de vulnerabilidade e não podem optar pelo isolamento, pois não têm onde se isolar: as pessoas em situação de rua. Desde 2012, estima-se que essa parte da população cresceu 140%. Em março de 2020, esse número atingiu 222 mil brasileiros, sendo que, aproximadamente, 56,2% dessas pessoas estão localizadas no sudeste, 17,2% no Nordeste e 15,1% no Sul do país.
De acordo com Marco Antônio Natalino, sociólogo e pesquisador do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea), o número de pessoas que moram nas ruas está ligado ao tamanho do município, seu grau de urbanização e de pobreza. Diante desse significativo número, encontram-se diversos perfis de indivíduos: homens, mulheres, crianças e idosos, que foram para as ruas por diferentes motivos, como problemas com drogas e alcoolismo, desemprego e problemas com a família, muitos deles sem escolaridade e também negros e pardos em sua maioria. Apenas na cidade de São Paulo, encontram-se 25 mil indivíduos nesta situação, sendo em torno de 80% desta população composta por homens e os outros 20% por mulheres, idosos e crianças (Censo de 2019).
Diante disso, o primeiro fator a ser exposto é o setor em que a grande parte dessa população busca se instalar: os grandes centros das cidades. Essas regiões são de maior facilidade, pois são áreas comerciais e possuem grande circulação de pessoas (Hiro, Rosa, Santos, 2018), sendo assim, a busca por alojamentos ou locais públicos (calçadas, viadutos, praças) é normalmente facilitada, mas, na atual situação, se tornou um fato preocupante, já que uma das principais medidas tomadas e recomendadas foi a não aglomeração. Além do maior risco de contaminação também há a dificuldade na identificação de contaminados e consequentemente no isolamento, já que as pessoas em situação de rua, em sua maioria, não possuem um lugar fixo, estão sempre em lugares distintos (Aguiar, Meireles, Rebelo, Barros, 2020).
Um segundo fator atrelado à questão de exposição às situações precárias é a da saúde dessas pessoas. Quando estão em locais informais a falta de higiene é um problema presente e, não apenas isso, mas o acesso à saúde pública também devem ser levados em consideração. Os indivíduos em situação de rua enfrentam dificuldades ou evitam acessar os serviços de saúde pública por diferentes razões:
“(...) destacando-se o preconceito e a discriminação relacionados às condições de higiene, que está prejudicada pelo uso de vestimentas sujas, falta de banho, odor fétido, bem como a falta de documentação para identificação e cadastro do usuário e o longo período de espera pelo atendimento.” (Hiro, Rosa, Santos, 2018)
Ademais, ainda há o problema do reconhecimento de sintomas por parte da própria população em situação de rua, isso porque falta de ar, dores pelo corpo, tosses e outros relacionados de certa forma estão sempre presentes no convívio dessas pessoas (Aguiar, Meireles, Rebelo, Barros, 2020), portanto, é de extrema importância a atuação dos órgão públicos para educação e suporte.
Com a pandemia do novo coronavírus, essas pessoas que se encontram em grande vulnerabilidade social, ficaram ainda mais expostas à doença e, principalmente, à fome, ao frio e ao descaso das entidades públicas. A COVID-19 também fez aumentar o número de pessoas em situação de rua, uma vez que, a crise econômica e o isolamento social, sem um auxílio financeiro suficiente, fizeram com que milhares de pessoas, no Brasil e em muitas outras partes do planeta, fossem de fato morar nas ruas. Este cenário fez diminuir as doações, dificultando ainda mais a vida destas pessoas.
É importante destacar que com o aumento do número de pessoas em situação de rua, os serviços de assistência social e as instituições, já precarizadas, não conseguem suprir o aumento da demanda. Dessa forma, não há infraestrutura para o acolhimento, principalmente de famílias em decorrência do desemprego. Os albergues com capacidades limitadíssimas, não os comporta em tempos normais e lhes oferece péssimas condições de higiene e de tratamento. Durante a pandemia, essa questão tornou-se ainda mais latente, uma vez que há a problemática de como abrigar pessoas juntas sendo que uma delas poderia estar contaminada.
Em meio a uma calamidade de saúde pública em que a higiene é essencial, os acessos à alimentação e à higiene se tornaram ainda mais difíceis, com os comércios e áreas públicas fechadas, e até mesmo para ter acesso à água as pessoas em situação de rua precisaram recorrer às doações, sendo o suprimento de álcool em gel e máscaras de proteção a algo bem mais complexo. Entretanto apesar do caos e da falta de recursos, as assistências de diversos municípios, juntamente com as ONGs e o voluntariado estão ativas e conseguindo lidar com a situação respeitando as orientações do Ministério da Saúde e da Organização Mundial da Saúde (OMS), de modo que já existem acolhimentos - mesmo que ainda pouco numerosos - que foram adaptados para a pandemia como atendimentos com triagem e separação dos indivíduos que apresentam os sintomas, para dar entrada no acolhimento, porém com capacidade reduzida e revezamentos.
Também estão sendo instalados os acolhimentos temporários, utilizando espaços culturais, religiosos, esportivos e educacionais. Nos albergues, alterações tiveram que ser feitas, dentre elas, o maior espaçamento entre as camas, o que minimizou a capacidade destes ambientes. Além disso, também houve as estratégias de prevenção com informações, orientação e conscientização sobre a higiene pessoal e os cuidados que são necessários durante a pandemia.
Todavia, devido a pandemia houve a redução de funcionários que atuam nessas instituições, com o afastamento de pessoas em grupo de risco, além da desarticulação entre as ONGs e falta de equipamentos de proteção individual. Com isso, os profissionais de assistências encontram-se obrigados a tomar iniciativas e decisões sobre as ações de enfrentamento a COVID-19 sem amparo oficial dos governos municipal, estadual e federal, e por mais se encontram muitas vezes sobrecarregados, o que pode comprometer sua saúde física e mental, além de reduzir ainda mais o quadro de trabalhadores disponíveis. Ademais, até o momento dessa pesquisa não houve pronunciamento do governo federal brasileiro sobre a criação e à implementação de políticas emergenciais para o apoio aos órgãos de assistência social no enfrentamento a COVID-19 junto à população em situação de rua.
Fonte: Ministério do Desenvolvimento Social e Combate à Fome, 2008
Apesar de todos os dados, o IBGE não tem uma contagem precisa sobre esses indivíduos, a última análise profunda feita foi em 2008 pelo Ministério de Desenvolvimento Social e Combate a Fome (como mostrado no dado anterior) e ainda assim não abrangeu todo o país. A falta de pesquisa sobre essa população acarreta nas diminuições das políticas públicas e na assistência social com os mesmo, o que se agravou ainda mais com a pandemia.
A conscientização e a educação sobre a doença também foi um grande empecilho. Diversas pessoas que se encontram em situação de rua não são alfabetizadas ou enfrentam problemas com drogas e bebidas. Diante disso, o principal meio de levar informações a eles é através de uma conversa, mas com as medidas de distanciamento social, somente os voluntários e ONGs realizaram este trabalho.
Hoje, existem políticas voltadas para a população em situação de rua, é importante ressaltar a Política Nacional para a População em Situação de Rua (PNPR), criada em 2009 com o intuito de garantir direitos básicos como respeito à dignidade, igualdade e acesso aos serviços públicos. No entanto, mesmo que haja um respaldo para esse grupo, o acesso à saúde, principalmente, ainda gera discussões; muitas vezes o indivíduo deixa de ou demora a procurar um serviço de saúde por causa do preconceito e despreparo, tanto por parte daquele que trabalham e quanto daqueles que usufruem do serviço (Hiro, Rosa, Santos, 2018).
Durante a pandemia o suporte para esse grupo teve que passar por reforços e alterações; diante de uma emergência em escala global ficou claro que a cooperação é essencial, porém, ficaram ainda mais claras as desigualdades sociais. Apesar de todos estarem sujeitos ao vírus, o risco de mortalidade não é igualitário, ou seja, a população marginalizada está sob maiores risco e os serviços públicos não dão conta de atender de maneira eficiente todos aqueles que precisam, isso inclui a PSR (População em Situação de Rua). Segundo um estudo do Ipea, as ações governamentais se deram logo no início da pandemia no Brasil com a distribuição de itens de higiene, equipamento de proteção individual básica e transferência direta de renda (Silva, Natalino, Pinheiro, 2020), mas não foram desenvolvidas e mais detalhadas de acordo com a progressão do cenário.
Outro aspecto importante sobre a questão das pessoas em situação de rua, já citado superficialmente, são os programas e auxílios do governo que também não são suficientes para minimizar o impacto causado pelo novo coronavírus. O acesso a aposentadoria, bolsa família e principalmente o auxílio emergencial foram dificultados. Com destaque para o benefício social de 600 reais oferecido pelo governo federal, a população de rua se encontra em desvantagem, visto que para receber o benefício é preciso apresentar documentos pessoais na qual nem sempre indivíduos os possuem, além de ser necessário acesso à internet para solicitar o benefício. Dessa forma o descaso por parte do governo federal sobre o planejamento do benefício é exposta.
Na cidade de São Paulo, o maior centro urbano do país, de acordo com os dados de uma tenda de atendimento franciscano, o número de atendimentos prestados às pessoas que estão em situação de rua aumentou de 50 em março para 2500 em maio. O Bom-Prato, sistema do Governo de São Paulo que disponibiliza refeições a 1 real, teve um expressivo aumento nas refeições vendidas diariamente. Muitas unidades tiveram filas e grandes aglomerações para que as pessoas conseguissem se alimentar em condições insalubres, sendo que algumas delas declararam que a comida havia piorado de qualidade e diversos deles não tinham, sequer, talheres para comer, o que aumenta ainda mais os riscos de contaminação pela COVID-19.
A prefeitura tomou algumas poucas medidas para conter a disseminação da doença entre essa população, no entanto, a ajuda está sendo dos órgãos beneficentes da cidade, tal como instituições religiosas e organizações não governamentais. Na zona sul na cidade, a Secretaria Municipal de Desenvolvimento Social (SMADS) implementou um albergue especial para receber apenas a população de rua contaminada pela doença. A prefeitura disponibilizou, por tempo limitado, centros esportivos para desafogarem os centros de acolhida já citados, e em alguns locais da cidade instalou pias para que estas pessoas pudessem higienizar as mãos.
No cenário internacional, muitos países, assim como o Brasil, apresentam dificuldade para dar suporte a essas pessoas. Na Inglaterra foi aprovado pelo governo um financiamento de 3,2 milhões de libras que destina a emergência de pessoas vulneráveis que precisam se auto isolar, como medidas de acolhimentos e instalações próprias para o isolamento, assim foram alugadas 300 quartos de hotéis não utilizados para o acolhimento. Em Portugal, assegura a continuidade de serviços de atendimento e distribuição de alimentos, além da preparação de espaços de isolamento, conscientização e orientação sobre a pandemia. Austrália e Estados Unidos, por sua vez, apresenta dificuldade de disponibilização de condições de higiene e também sobre a possibilidade de assegurar um local para a quarentena e serviços de saúde, chegando a transmissão do vírus nos abrigos.
É importante ressaltar que, embora a pandemia do novo coronavírus tenha aumentado as dificuldades das pessoas em situação de rua, o descaso público e a falta de investimentos governamentais que auxiliem essas pessoas ocorre desde sempre. A COVID-19 foi um fator atenuante da situação e uma oportunidade de se evidenciar tal realidade, a qual deve ser discutida todos os dias, mesmo com o fim da pandemia, para que os Estados criem políticas públicas que melhorem o quadro e a qualidade de vida destas pessoas.
Referências Bibliográficas
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REVISTA VEJA. Em meio a pandemia países improvisam para abrigar os sem teto. Disponível em:
https://veja.abril.com.br/mundo/em-plena-pandemia-paises-improvisam-para-abrigar-os-sem-teto/