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Cadernos LabRI/UNESP - Núm. 10 · ISSN 2764-7552

Dentro da Panela do Autoritarismo

Por Bárbara Figueiredo, Isabela Bortoloto e Maria Luiza Aguiar

Durante a história da humanidade, o acesso ao conhecimento foi muitas vezes bloqueado em nome de interesses particulares. A exemplo disso, pode-se citar o “Index Librorum Prohibitorum”, criado pela Inquisição durante o período da Contrarreforma...

Durante a história da humanidade, o acesso ao conhecimento foi muitas vezes bloqueado em nome de interesses particulares. A exemplo disso, pode-se citar o “Index Librorum Prohibitorum”, criado pela Inquisição durante o período da Contrarreforma. Esse documento tinha por objetivo censurar uma série de livros considerados hereges pela Igreja Católica, proibindo a circulação destes. Tal evento volta a se repetir com a queima de determinados textos pelo governo nazista, com o objetivo de eliminar todos aqueles que fugiam do ideal de Hitler. Em 1993, a Organização das Nações Unidas (ONU) instituiu, então, o Dia Mundial da Liberdade de Imprensa, reafirmando o direito à liberdade de expressão, repetidamente violado ao longo do tempo. No entanto, apesar dos esforços da entidade, ainda hoje é possível constatar uma certa perseguição à imprensa em diferentes países, o que dificulta a disseminação de informações essenciais ao combate à pandemia, além de abalar um dos principais pilares democráticos.

A descrença nos meios de comunicação em nível global, frequentemente acusados de veicular notícias falsas e mentirosas, acaba por atravancar a tomada de respostas rápidas e eficazes à crise sanitária. Essa falta de confiança, acentuada pela polarização ideológica e pelo fenômeno das fake news, opõe-se ao papel fundamental que a mídia vem desempenhando em meio à pandemia: o de divulgar informações verificadas sobre o vírus e recomendações para conter a sua propagação, atuando em conjunto com a comunidade científica e com os órgãos de saúde nacionais e internacionais. António Guterres, secretário-geral da ONU, reforça a importância dessa função para o mundo:

À medida que a pandemia se espalha, dá origem também a uma segunda pandemia de desinformação, desde conselhos prejudiciais à saúde até teorias conspiratórias ferozes. A imprensa fornece o antídoto: notícias e análises verificadas, científicas e baseadas em fatos.

Assim como afirma o comissário, os meios de comunicação possibilitam o combate à informações equivocadas por meio da divulgação de materiais pautados na ciência e no bom senso. Nesse momento em que vivemos, torna-se mais que necessário, portanto, acreditar na imprensa e em seus profissionais, os quais contribuem ativamente para impedir o avanço dessas duas novas ondas: a do coronavírus e a de desinformação.

Vale ressaltar, ainda, um dos riscos que essa desconfiança representa: a sua conversão em uma hostilidade cada vez maior contra os jornalistas. Como reflexos desse fenômeno, já podemos observar violências físicas e verbais serem desferidas contra esses profissionais em diversos países, a exemplo do Brasil, onde, justamente no Dia Mundial da Liberdade de Imprensa (dia 3 de maio), manifestantes agrediram jornalistas durante um ato no Planalto. Uma pesquisa internacional realizada pela Edelman Intelligence, uma consultoria global de análise, reafirma que esse descrédito da imprensa é, de fato, uma tendência ao redor do mundo. Segundo o estudo, 57% das pessoas pesquisadas pensam que a mídia está contaminada por informações falsas. Além disso, foi constatado que 76% dos entrevistados temem que as fake news são utilizadas como uma arma pelos governos e por outras instituições, um aumento de 6% de 2018 para 2020. Esses dados refletem uma desconfiança generalizada na sociedade e que pode desencadear, como já vimos em alguns casos, comportamentos violentos e ofensivos. Frente a esse cenário, deve-se salientar que a perseguição à mídia, seja por meio de agressões físicas ou verbais, ameaça a disseminação de informações confiáveis, essenciais ao combate à pandemia.

Além disso, a dificuldade de regulamentação dos meios de comunicação pode impulsionar medidas autoritárias que, com a alegação de que são necessárias para conter o avanço do vírus, facilitam a perseguição à imprensa e ao jornalismo crítico. Em meio a essa discussão, cabe citar a metáfora do sapo, utilizada pelo advogado Pedro Abramovay para descrever o autoritarismo no século XXI. Nela, são apresentadas duas situações: uma em que o animal é jogado dentro de uma panela com água escaldante, pulando imediatamente; e outra em que é jogado em água fria, que pouco a pouco vai esquentando até ferver, morrendo cozido por não perceber o aumento gradual da temperatura. Abramovay, então, compara esses casos à reação dos cidadãos ao autoritarismo. Assim como o sapo que automaticamente pula ao cair em água fervente, as pessoas tendem a se logo revoltar frente a transições repentinas de um regime democrático para um ditatorial.

Por outro lado, a adoção de medidas autoritárias por democracias costuma passar despercebida pela população, permitindo que esse despotismo cresça cada vez mais, igual a temperatura da água que vai aumentando até matar o sapo. A exemplo dessa metáfora, muitos governos têm alegado a urgência da pandemia como pretexto para restringir, de maneira sutil e vedada, a autonomia da imprensa. Esse é o caso da Bolívia, onde foi criado um decreto que prevê a prisão de quem “desinformar” acerca do novo coronavírus, o que pode ser utilizado para legitimar a perseguição à mídia e a opositores do governo. O mesmo acontece na Hungria, país cujo presidente aprovou uma lei que lhe permite governar sob decretos por tempo ilimitado e impor pena de prisão a jornalistas.

Ambos os casos ilustram esse novo autoritarismo do século XXI, o qual utiliza de meios não tão transparentes para restringir pouco a pouco as liberdades de imprensa e de expressão, sem que os cidadãos percebam de imediato. A limitação desses direitos dificulta a fiscalização e a denúncia, por parte dos meios de comunicação, de possíveis abusos de poder cometidos pelos Estados. Além de auxiliar o combate à pandemia, a imprensa desempenha, portanto, uma função que deve ser protegida a todo custo: a de guardiã da democracia.

Enfim, torna-se evidente que a disseminação de informações confiáveis e críticas acerca do novo coronavírus depende de uma mídia livre e independente, a qual também é uma importante ferramenta democrática. A crise de confiança atual dificulta a atuação dos profissionais dessa área, podendo servir, ainda, como justificativa para comportamentos agressivos. Há o risco, também, da adoção de medidas autoritárias supostamente necessárias ao combate à pandemia, facilitando a perseguição aos jornalistas. Uma sugestão para evitar esses possíveis abusos de autoridade é o maior cuidado na redação de qualquer lei de combate à desinformação, impedindo interpretações que possibilitem a interferência irrestrita do Estado na imprensa. Somente a partir de soluções como essa será possível conter o aumento gradual do autoritarismo, impedindo que as liberdades individuais sejam sufocadas pela escalada antidemocrática.

Referências Bibliográficas

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CHARLEAUX, João Paulo. Como o coronavírus deu superpoderes ao premiê da Hungria. Disponível em: https://www.nexojornal.com.br/expresso/2020/03/31/Como-o-coronav%C3%ADrus-deu-superpoderes-ao-premi%C3%AA-da-Hungria. Acesso em: 7 maio 2020.

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REPORTERS WITHOUT BORDERS. 2020 World Press Freedom Index: “Entering a decisive decade for journalism, exacerbated by coronavirus”. Disponível em: https://rsf.org/en/2020-world-press-freedom-index-entering-decisive-decade-journalism-exacerbated-coronavirus. Acesso em: 5 maio 2020.

RODRIGUES, Randolfe. Ataques de Bolsonaro à imprensa e perseguição a jornalistas são estímulos às fake news. Disponível em: https://www.cartacapital.com.br/opiniao/ataques-de-bolsonaro-a-imprensa-e-perseguicao-a-jornalistas-sao-estimulos-as-fake-news/amp/. Acesso em: 4 maio 2020.

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