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Cadernos LabRI/UNESP - Núm. 13 · ISSN 2764-7552

Pandemia e Autoritarismo Uma Relação de Oportunismo?

Por Gustavo Castejon, Livia Vitório Dutra e Matheus Novais

Oportunidade e autoridade. Estas duas palavras são requisitos mínimos, as bases, de acordo com o cientista político português João Pereira Coutinho em entrevista dada ao podcast Café da Manhã...

Oportunidade e autoridade. Estas duas palavras são requisitos mínimos, as bases, de acordo com o cientista político português João Pereira Coutinho em entrevista dada ao podcast Café da Manhã, para que um líder autoritário possa engendrar ações, medidas e impor-se aos demais membros da esfera social, de modo a consolidar um governo caracterizado por interesses pessoais e absolutos. Nesse sentido, ao analisar o atual cenário, é possível identificar facilmente condições propícias para tais disposições, por meio de uma justificativa: a COVID-19. Contando com um número de mais de 3 milhões e meio de infectados e mais de 250 mil mortos ao redor do mundo até o dia em que este texto fora escrito - segundo dados divulgados pela Universidade Johns Hopkins - o novo coronavírus gera uma mobilização mundial nunca antes vista: superlotação de sistemas de saúde, retração econômica tanto do setor privado quanto público, conflitos políticos e sociais, isolamento em massa, busca por uma cooperação internacional em prol do combate à pandemia, entre outros. Desse modo, muitos regimes veem neste cenário de fragilidade uma oportunidade para exceder em algumas medidas, as quais inicialmente não possuem necessariamente um teor autoritário que transgridam as liberdades individuais, no entanto, gradativamente, revelam-se expressamente despóticas nas mãos das autoridades destes regimes.

De que forma essas ações autoritárias se consolidam?

Tomemos como exemplo a China, que demonstrou um sentimento de certa forma obsessivo em relação ao controle de informação e de notícias de veículos independentes. Um dos primeiros casos alarmantes dessa obsessão foi o de Li Wenliang, oftalmologista do Hospital Central de Wuhan, que tentou avisar os chineses de um possível surto viral no país. Depois de conversar sobre esse assunto no WeChat - principal plataforma de mensagens instantâneas na China - com amigos da faculdade de medicina, Wenliang e outros sete médicos da área foram interrogados durante horas e depois forçados a assinar um documento atestando que estavam “espalhando falsos rumores”. Ainda, existem relatos do caso do jornalista Chen Qiushi, que se mudou para Wuhan logo após o início do surto de uma “pneumonia viral” no local. Em seu último vídeo gravado, Qiushi diz “Estou com medo, na minha frente está o vírus e atrás de mim está o poder legal e administrativo da China.”. O jornalista passou duas semanas filmando hospitais superlotados em Wuhan e pacientes sem cuidados médicos adequados. Chen Qiushi está desaparecido desde o início do mês de fevereiro.

No Brasil, a fragilidade econômica proveniente da pandemia foi uma porta de entrada para discursos ultranacionalistas do Presidente Jair Bolsonaro. Parte da população está indo de acordo com o presidente que, mesmo durante uma situação tão delicada defende a reabertura do comércio e de outras esferas sociais. Esse tipo de discurso populista atraiu eleitores de Bolsonaro os quais, no dia 19 de abril formaram uma manifestação, indo contra recomendações do Ministério da Saúde e da Organização Mundial da Saúde (OMS), em prol de uma intervenção militar no país e do Ato Institucional (AI-5), ato inconstitucional realizado durante o período do regime militar, que permitia o fechamento do Congresso e a suspensão dos direitos dos cidadãos brasileiros. Bolsonaro participou da manifestação e fez declarações extremamente antidemocráticas como “Não queremos negociar nada” e “Todos no Brasil têm que entender que estão submissos à vontade do povo brasileiro”.

O que essas medidas implicam?

Demonstrado esse oportunismo por parte dos governos com características despóticas acerca do novo coronavírus, as medidas autoritárias podem deixar marcas irremediáveis em um futuro não tão distante, estas que variam desde a dissolução de democracias à perda de liberdades individuais por parte da esfera social. Como exemplo, toma-se a Hungria, na qual o presidente atual, Viktor Órban, instaurou um corpo legislativo que o dá o direito de governar por decretos e por um tempo ilimitado, tornando-se uma clara demonstração de uma atitude antidemocrática como expresso pelo diretor de comunicações da seção europeia da Organização não Governamental (ONG) Human Rights Watch (HRW), Andrew Stroehlein. Por conseguinte, materializa-se nesse exemplo o fator oportunidade, alinhado intrinsecamente ao poder de ação do presidente com o momento frágil atual. Não menos importante, de acordo com o South China Morning Post, a China, epicentro inicial da COVID-19, está fazendo a utilização de drones para, dentre outras funções, monitorar a população e advertir sobre o uso de máscaras e o isolamento social. À primeira vista, tais medidas não parecem causar tanto alarmismo quanto a qualquer tipo de autoritarismo. No entanto, vale analisar que, mesmo sendo medidas de combate à pandemia, elas ferem a liberdade e privacidade de cada indivíduo, tendo como fim, talvez, uma “normalização” do ato de vigilância social, uma vez que, estas medidas provisórias podem no futuro tornarem-se efetivas. Dessa forma, é necessário ater-se para o cenário atual da crise e o panorama de cada país que está no caminho do aumento descontrolado do poder, visto que ações de cunho autoritário causam grande impacto para o futuro dos indivíduos enquanto parte da sociedade, de modo a ameaçar o seu exercício da democracia.

Recomenda-se, para maior aprofundamento acerca do assunto, o podcast “Como o autoritarismo age numa pandemia”, do Café da Manhã, podcast em parceria com a Folha de São Paulo e Spotify disponível em: https://open.spotify.com/episode/4bzIGeMaqqz5gISXFUZmvf?si=aM0WWABhRuGmEXSHzbvmag, além da notícia do G1 sobre os drones chineses disponível em: https://g1.globo.com/ciencia-e-saude/noticia/2020/02/05/drones-sao-usados-pela-policia-para-alertar-sobre-o-risco-do-novo-coronavirus-na-china.ghtml.

Referências Bibliográficas

Drones são usados pela polícia para alertar sobre o risco do novo coronavírus na China. G1. 05 de fev. de 2020, Disponível em: https://g1.globo.com/ciencia-e-saude/noticia/2020/02/05/drones-sao-usados-pela-policia-para-alertar-sobre-o-risco-do-novo-coronavirus-na-china.ghtml. Acesso em: 25 de abr. de 2020.

BASSETS, Marc. Alain Touraine: “Choque econômico do coronavírus pode produzir reações fascistas”. El País, 31 de mar. de 2020. Disponível em: https://brasil.elpais.com/ideas/2020-03-31/alain-touraine-choque-economico-do-coronavirus-pode-produzir-reacoes-fascistas.html. Acesso em: 24 de maio de 2020.

Como o autoritarismo age numa pandemia. Locução de: VIZEU, Rodrigo e FLORES, Magê. Spotify. 2 de abr. de 2020. Podcast. Disponível em: https://open.spotify.com/episode/4bzIGeMaqqz5gISXFUZmvf?si=aM0WWABhRuGmEXSHzbvmag. Acesso: em 24 de abr. de 2020.

Coronavirus: The information heroes China silenced. Reporters Without Borders, 25 de mar. de 2020. Disponível em: https://rsf.org/en/news/coronavirus-information-heroes-china-silenced. Acesso em: 24 de abr. de 2020.

QIUSHI, Chen. Lawyer Chen Qiushi documenting coronavirus epicentre disappears. 2020. (02m38s). Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=Iwpr55PZEJ8. Acesso em: 25 de abr. de 2020.

MERCIER, Daniela. Bolsonaro endossa ato pró-intervenção militar e provoca reação de Maia, STF e governadores. El País. Disponível em: https://brasil.elpais.com/politica/2020-04-19/bolsonaro-endossa-ato-pro-intervencao-militar-e-provoca-reacao-de-maia-stf-e-governadores.html. Acesso em: 23 de abr. de 2020.

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