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Cadernos LabRI/UNESP - Núm. 19 · ISSN 2764-7552

A negligência governamental e a “Aliança do Avestruz”

Por Maria Paula Morabito e Matheus Valencia

Enquanto a maior parte do mundo busca medidas de contenção ao novo coronavírus, alguns países, infelizmente, ignoram a gravidade da situação...

Enquanto a maior parte do mundo busca medidas de contenção ao novo coronavírus, alguns países, infelizmente, ignoram a gravidade da situação. Seus respectivos líderes promovem discursos de negação à ciência e políticas que colocam em risco a saúde da população. Criado por Oliver Stuenkel, professor de Relações Internacionais da Fundação Getúlio Vargas (FGV) , o termo “Aliança do Avestruz” faz referência ao mito de que avestruzes enterram sua cabeça no solo ao enfrentarem perigo. A metáfora, trazida para o contexto atual, crítica a atuação política de Daniel Ortega, presidente da Nicarágua, Alexander Lukashenko, presidente da Bielorrússia, Gurbanguly Berdymukhamedov, presidente do Turcomenistão, e Jair Bolsonaro, presidente do Brasil.

Eleito primeiramente em 1985, e voltando ao cargo em 2011, Daniel Ortega, que hoje vive sua segunda reeleição, é um presidente de esquerda que rege timidamente as rédeas da Nicarágua durante a pandemia do novo coronavírus. Famoso por críticas ao isolamento social e como o processo pode acarretar danos à economia do país, Ortega manteve-se “desaparecido” por 34 dias após pronunciamentos lamentáveis em rede nacional. A sua volta aos holofotes foi marcada por polêmicas a respeito de sua descrença na pandemia e a atribuição da mesma a uma força divina, citando que “o coronavírus é um sinal que Deus está nos mandando”.

O líder sandinista já havia se envolvido em controvérsias em 2018, após protestos contra sua permanência no cargo tornarem-se um banho de sangue resultando em 351 mortes, entre manifestantes e paramilitares. A ineficácia de suas políticas a partir do primeiro caso registrado na Nicarágua, em 11 de março, foi fortemente criticada pela Comissão Interamericana de Direitos Humanos (CIDH) que solicitou ao governo de Ortega a adoção de “medidas eficazes de atenção e contenção da pandemia” declarando que “a vida, a saúde e a integridade da população devem estar acima de qualquer consideração partidária ou política”.

Para Ortega, o avanço da pandemia no país é lento, o que permitiria um relaxamento das medidas de isolamento sem que houvessem colapsos no setor industrial e de serviços. Recusando-se em um primeiro momento a declarar estado de quarentena, o presidente também adiou o fechamento das fronteiras e o isolamento social permitindo, inclusive, que esportistas realizassem partidas de futebol, lutas de boxe e corridas de ciclismo. José Martínez, jogador de futebol do clube Las Sabanas, declarou sua preocupação com o posicionamento de Ortega, afirmando que “há um contrato de trabalho que precisa ser respeitado”. Enquanto o número de contaminados no país cresce, com julgamentos a subnotificação de casos por parte do Ministério da Saúde, e as tensões entre a população e o chefe do executivo se acirram, fica claro que o perfil negacionista de Daniel Ortega acarretará custos políticos a si próprio.

O mesmo cenário parece se repetir na Bielorússia, onde o presidente Alexander Lukashenko, considerado por muitos o “último ditador europeu” contestou o exagero da mídia frente a crise afirmando que “um copo de vodka, sauna e trabalhar com trator no campo” seriam a cura do novo coronavírus. Totalizando 25 anos no poder, Lukashenko, a partir do descontentamento populacional, tornou-se um refém do próprio sistema que criou, apesar de seu estilo autoritário, celebrando em 2019 um quarto de século na presidência de Belarus. Assumindo um discurso contestatório como o de Daniel Ortega, Lukashenko é descrente da eficácia do isolamento e nega as hipóteses de uma quarentena na Bielorrússia.

O presidente também tomou medidas voltadas à censura, contatando a Komitet Gosudarstvennoi Bezopasnosti (KGB) para que a agência investigasse veículos midiáticos responsáveis por, nas palavras de Lukashenko, “tornar as pessoas psicóticas levando-as a entrar em pânico”. A Bielorrússia possui hoje mais de 16 mil casos confirmados entre seus 9,5 milhões de habitantes e, felizmente, apesar da negligência de seu governante, a população tem ciência da crise que vivenciam optando unilateralmente pela proteção fornecida pelo distanciamento social e o uso de máscaras. Bielorrussos concluem, portanto, que a abnegação de seu chefe de Estado não será a força motriz responsável pela morte de seus familiares.

Já no Turcomenistão, o presidente Gurbanguly Berdimuhamedov chegou a proibir o uso da palavra “coronavírus”, tanto para os indivíduos como para toda a imprensa, autorizando a prisão de quem faça o uso da palavra. O país também alega não haver nenhum caso da COVID-19 em seu território, contudo, os dados divulgados não são confiáveis, pois sabe-se que o governo local é conhecido pela censura e por ser um dos mais fechados do mundo, sendo muitas vezes comparado à Coreia do Norte.

Ao passo que grande parte do mundo está realizando medidas de isolamento social frente à pandemia, o Turcomenistão continua com um ritmo de vida normal, com restaurantes abertos, pessoas circulando nas ruas e grandes aglomerações. No dia 07 de abril foi realizada a tradicional pedalada para comemorar o Dia Mundial da Saúde, evento onde o presidente, por ser a principal estrela, pôde tentar fazer jus à sua promessa de que seu mandato seria uma “era de poder e felicidade”.

Essa atitude demonstrou a irresponsabilidade de Berdimuhamedov ao expor sua população à um grande risco, pois este sabe que um surto da COVID-19 pode expor o quão vazias são suas mensagens. É por esse motivo que o governo turcomeno pode tentar ocultar um surto, mesmo que seus cidadãos sejam infectados.

No Brasil, país recentemente adicionado à Aliança do Avestruz, a situação se agrava a cada dia. O presidente Jair Messias Bolsonaro demitiu, em plena pandemia, o então Ministro da Saúde Luiz Henrique Mandetta, pois este era defensor do isolamento social e de demais medidas recomendadas pela Organização Mundial da Saúde (OMS), com as quais Bolsonaro não concorda. A mesma situação foi prevista, e confirmada, com a demissão de Nelson Teich no último dia 15. Pressionado por paulatinamente adotar uma postura a favor do isolamento social e contrária a distribuição e uso da cloroquina, Teich deparou-se com a mesma rigidez enfrentada por Mandetta ao buscar conciliar as recomendações da OMS à desvirtuosa garantia de dissolução da quarentena proposta por Bolsonaro.

O chefe de Estado segue uma linha de pensamento marcada por um forte negacionismo científico, favorável à economia e à manutenção da vida normal. Em um de seus pronunciamentos nacionais, ele afirmou que o coronavírus seria apenas uma “gripezinha”, e realçou uma certa ”histeria” feita pela mídia acerca do assunto. Outro ato feito pelo presidente, foi convocar a população para ir às ruas em uma manifestação contra o Congresso Nacional e o Supremo Tribunal Federal (STF), gerando grandes aglomerações.

No editorial publicado pelo jornal estadunidense The Washington Post no dia 13 de Abril, Bolsonaro foi classificado como o pior líder para lidar com a crise da COVID-19. Ao ser notificado do número de mortos no Brasil, que já ultrapassou a China, o presidente respondeu: “E daí? Quer que eu faça o que? Sou messias, mas não faço milagre.”, colocação criticada por diversos veículos de comunicação nacionais e internacionais. Ao que parece, Bolsonaro continuará no obscurantismo e seguirá seu viés anti-democrático por tempo indeterminado.

Referências Bibliográficas

BBC. 'Aliança do Avestruz': FT destaca grupo de Bolsonaro e outros líderes que 'se recusam a levar coronavírus a sério'. 2020. BBC Brasil. Disponível em: https://www.bbc.com/portuguese/internacional-52328505. Acesso em: 05 maio 2020.

MIRANDA, Wilfredo. Daniel Ortega reaparece após 34 dias e volta a minimizar o impacto da pandemia na Nicarágua. 2020. EL PAÍS. Disponível em: https://brasil.elpais.com/internacional/2020-04-16/daniel-ortega-reaparece-apos-34-dias-e-volta-a-minimizar-o-impacto-da-pandemia-na-nicaragua.html. Acesso em: 05 maio 2020.

Estadão Conteúdo. Covid-19 desafia 3 autocratas de grupo cético apelidado ‘Aliança do Avestruz’. 2020. Estado de Minas. Disponível em: https://www.em.com.br/app/noticia/internacional/2020/04/19/interna_internacional,1140059/covid-19-desafia-3-autocratas-de-grupo-cetico-apelidado-alianca-do-av.shtml. Acesso em: 05 maio 2020.

LOPES, Diogo. Um copo de vodka, sauna e trabalhar com trator no campo. Alexander Lukashenko, o último negacionista da Covid-19. 2020. Observador. Disponível em: https://observador.pt/2020/03/31/um-copo-de-vodka-sauna-e-trabalhar-com-trator-no-campo-alexander-lukashenko-o-ultimo-negacionista-da-covid-19/. Acesso em: 06 maio 2020.

SÁ, Nelson de. Bolsonaro forma Aliança do Avestruz, diz Financial Times. 2020. Folha de S. Paulo. Disponível em: https://www1.folha.uol.com.br/colunas/nelsondesa/2020/04/bolsonaro-forma-alianca-do-avestruz-diz-financial-times.shtml. Acesso em: 06 maio 2020.

O GLOBO. Da 'gripezinha' ao 'e daí?', confira as reações de Bolsonaro enquanto aumentavam as mortes pela pandemia no Brasil. 2020. O Globo. Disponível em: https://oglobo.globo.com/brasil/da-gripezinha-ao-dai-confira-as-reacoes-de-bolsonaro-enquanto-aumentavam-as-mortes-pela-pandemia-no-brasil-24402593. Acesso em: 06 maio 2020.