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Cadernos LabRI/UNESP - Núm. 20 · ISSN 2764-7552

O boicote da OMS a Taiwan está custando vidas?

Por Sofia Sabbag

O atual surto pandêmico da COVID-19, ocorrendo pelo globo e iniciado na Ásia no começo de 2020, colocou em evidência diversas questões acerca da capacidade de cooperação entre países em face de ameaças ao estado da saúde internacional...

O atual surto pandêmico da COVID-19, ocorrendo pelo globo e iniciado na Ásia no começo de 2020, colocou em evidência diversas questões acerca da capacidade de cooperação entre países em face de ameaças ao estado da saúde internacional. Nesse sentido, a Saúde Global tem muito a contribuir para a solução desta e de pandemias futuras, pois se trata, inter alia, da convergência do campo da Saúde e das Relações Internacionais, bem como um transbordamento dos problemas de saúde de nível nacional para global, e um direito universal a ser conquistado, em consonância com o Objetivo 3 da Agenda 2030 para Desenvolvimento Sustentável da Organização das Nações Unidas (ONU): Assegurar uma vida-saudável e promover o bem estar de todos, em todas as idades.

Desse modo, o “timing” da pandemia é mais que oportuno, visto que, apesar dos custos humanos e socioeconômicos que causa, explicita uma necessidade pungente: um sistema de saúde em nível global, que responde prontamente aos problemas médico-sanitários do mundo globalizado, não limitado às fronteiras dos países, dado a universalidade do vírus SARS-CoV-2 , de modo a abrir espaço para a contemplação deste e outros problemas da saúde moderna tais quais, dietas excessivas em açúcar e alimentos processados, obesidade, sedentarismo etc. Assim, é latente a relevância da Saúde Global e, por esse motivo, deve-se começar a pensar em como torná-la possível.

Nesse sentido, a coordenação de países pela Organização Mundial da Saúde (OMS) perante aos problemas globais de saúde é consensual como sendo fundamental, tendo em vista os aconselhamentos de países, fomento às pesquisas e ações preventivas. Tal órgão trabalha diretamente com ministérios, secretarias de saúde, empresas farmacêuticas e de biotecnologia pelo mundo, criando uma ampla rede de domínio de poder (DEUTSCH, 1978) sobre vários sujeitos mundiais. Isto é, um poder institucional e político que comporta várias populações, as quais observam suas recomendações. Ou seja, a OMS, filiada da ONU e da completude dos Estados-membros, dispõe papel fundamental na criação de um regime internacional, ad hoc, nos entendimentos de Stephen Krasner (2010) como princípios, normas, regras e procedimentos de tomada de decisões de determinada área das relações internacionais em torno dos quais convergem as expectativas dos autores . Assim, se pode desenvolver a partir de um regime internacional específico, possibilitando ainda mais a efetivação da Saúde global, qual seja, o nicho de atores da área de saúde do mundo, tanto governamentais quanto estatais, em prol da aplicação da saúde como direito humano.

Para o presente estudo, o caso de Taiwan ou, República da China, é de destaque pelo êxito na contenção do novo coronavírus; considerando a proximidade do epicentro, 130km da China Continental e o número de vôos entre os dois países, seria esperado números alarmantes de contágio de acordo com as primeiras previsões da renomada Johns Hopkins University, as quais apontavam que Taiwan seria o segundo país com maior número de infectados por coronavírus. Além disso, cerca de 850.000 taiwaneses moram na China, e 404.000 trabalham no país, números que mantém as entidades alertas para possíveis emergências epidemiológicas provindas da China desde o surto da SARS (sigla em inglês para Síndrome Respiratória Aguda Grave), em 2003.

A pequena ilha, desprovida de apoio e reconhecimento na comunidade internacional, obteve um sucesso na contenção do vírus no mundo, tendo curvas de disseminação explicitamente atenuadas devido às ações precoces de controle de fronteira aos viajantes que estiveram em Wuhan, cidade origem da COVID-19, antes dessa, inclusive,ser isolada, bem como muitas outras medidas que serão explicitadas adiante. Dada uma comparação simplória, em 18 março, Taiwan registrou 100 infectados e uma única morte, enquanto a China ultrapassava o marco de 80.000 infectados e 3237 mortes e a Coreia do Sul, relativamente próxima, 8000 infectados e 91 mortes. Ou seja, enquanto seus vizinhos registram centenas e milhares de números de casos e mortes a mais, os números em Taiwan não estavam tampouco próximos dessas casas unitárias e essa diferença não é de se passar despercebida. Até a data de 25 de maio, por exemplo, os padrões continuam: 7 mortes em Taiwan, 4634 mortes na China e 230 na Coreia do Sul, até mesmo 830 no Japão, de acordo com gráficos da Bing e da Johns Hopkins University para a COVID-19. Como numa mesma região, um país sem apoio internacional pode sair do padrão na contenção do vírus? e ademais, sair-se tão bem? Mesmo que guardadas as devidas proporções entre as populações, e as singularidades de cada caso nacional, o que se quer destacar no presente texto seria a contenção da disseminação, que no caso taiwanês foi extremamente bem sucedida, chegando a marcar 0.3 mortes por milhão de habitantes, enquanto a média mundial é 321 por milhão, conforme dados da Worldometers. O que Taiwan fez que o mundo não fez?

Esse fato se deve em suma, primeiramente, à experiência da SARS em 2003. Um ano após o surto, o governo taiwanês criou um mecanismo público de saúde e respostas a epidemias, o National Health Command Center (NHCC) que, além de atuar como uma espécie de Sistema Único de Saúde brasileiro, faz, também, o papel central na comunicação entre autoridades centrais, locais e regionais, em contexto de ameaças epidemiológicas como a COVID-19. Este sistema inclui outros 4 centros de controles de doenças que se integram em torno do NHCC, compondo um largo disaster-management de saúde pública. Segundo entrevista ao jornal Folha de São Paulo, o ministro da saúde taiwanês, Chen Shi-Chung, disse que um dos trunfos é precisamente, a descentralização: cerca de 162 instituições foram designadas por todo o país para ajudar no monitoramento e testagem de casos. Outro trunfo seria a vigilância intensa de casos, investigando o histórico e a saúde do paciente durante toda a quarentena. Com tais medidas não houve, portanto, a necessidade de lockdown, porque a população praticou as medidas de isolamento e colaborou ativamente com as recomendações do governo de distanciamento social.

Dentre outras políticas precoces de contenção, tem-se medição de temperatura nas ruas, garantia de estoque de máscaras proibindo a exportação, avaliação de recursos médico-hospitalares entre outros. A partir de 5 de janeiro, para cada passageiro que chegasse do exterior, uma quarentena de 14 dias era imposta, com monitoramento governamental via celular, criando um banco de dados a partir do preenchimento de formulários online e mensagens de textos do Centro de Controle de Doenças (CDC) pela população. Criou-se um aplicativo para informar onde se podia comprar máscaras e outro sobre o histórico de pacientes infectados. Também, este Centro, anunciava em 20 de janeiro, que possuía em estoque 44 milhões de máscaras cirúrgicas, 1,9 milhões de máscaras N95, e 1100 salas de isolamento para casos de pacientes de alto risco.

De acordo com uma reportagem da PBS NewHour, dependendo do sintomas da pessoa, testes de COVID-19 já eram feitos no aeroporto e a pessoa era levada até sua casa por táxis alugados pelo pelos agentes públicos, impedindo-a de pegar de transporte público. Pontua-se ainda, a transparência pública do governo ao avisar a população, todos os dias, vias entrevistas dos Centros de Controle, mensagens de textos sobre lavar as mãos e evitar aglomerações. Essa abordagem configurou-se como pragmática, democrática e contendora de danos desde cedo, por isso deve ser reconhecida e vista como uma conquista no plano da saúde mundial, dentro de um contexto de descontrole da contenção e medidas descoordenadas da maioria dos países. Foram essas medidas, dentre um rol delas, que fizeram o achatamento da curva de contaminação e assim, um sucesso singular na batalha contra o coronavírus. Dado esse modelo, só resta à especulação desenhar quais seriam os possíveis cenários da COVID-19 no mundo, se tivesse recebido conhecimento da comunidade taiwanesa; tantas pessoas teriam sofrido ou morrido, se a OMS ouvisse todos os casos nacionais de experiência de epidemias internacionais, sem discriminação política?

É nessa ótica que, no atual cenário de ameaça à integridade física de boa parte da população do planeta, cabe às organizações internacionais, principalmente a OMS, chefiadas por vários Estados, mobilizarem todos os esforços disponíveis para a proteção da vida e atenuação das consequências da pandemia, independentes de entraves geopolíticos menores como que ocorre entre China e Taiwan, desde 1949. É vital que se reconheça o sucesso de Taiwan e suas possíveis contribuições para os outros países do mundo, a fim de sempre atingir os princípios que regem a atuação da OMS, tais quais a autodeterminação dos povos, e o direito humano de acesso à saúde independente de distinções de raça, religião, opinião política, economia e condição social. Por ocorrência da atual pandemia, é do interesse público mundial a resolução desse conflito bilateral, em vista de tantas contribuições e serventia mútua, não somente para a mitigação da disseminação do coronavírus como também para futuras pandemias que virão.

Conforme noticiado na revista Time, não é mais cabível, atualmente, haver essa espécie de “buraco-negro” geopolítico entre duas Nações, sendo que muitos dos problemas do século XXI atravessam fronteiras; essa exclusão da expertise da comunidade taiwanesa pode estar custando vidas, e não coaduna com o multilateralismo das relações internacionais modernas, ainda mais dentro de temas universais como os direitos humanos, que inclui o acesso de todos ao mais alto padrão de sistemas de saúde, como afirma a carta da OMS .

O governo de Taiwan inclusive, possui uma campanha intitulada Taiwan Can Help (“Taiwan Pode Ajudar”), desde 2017, quando passou a ser excluído das reuniões internacionais de saúde da OMS, as quais antes era possível de participar como observador. Naquele ano, a presidente Tsai-Ing Wen assumia o cargo, conhecida pela vontade de trazer independência e reconhecimento da soberania de seu povo e pela não aderência ao princípio “Uma-China” de Beijing, isto é um entendimento de que não pode existir dois países autoproclamados chineses, e de que Taiwan é, inegavelmente, uma parte da atual China. A partir da reeleição da independentista em 2017, Taiwan passou a ser excluída das reuniões anuais, levou a exclusão da delegação taiwanesa, como por exemplo, nas reuniões de janeiro de 2019 sobre Vírus Influenza. Além disso, dados do Ministério das Relações Exteriores de Taiwan mostram que, de 2009 para 2019, o índice de rejeição à participação em conferências técnicas da OMS foi de 70%.

Essa campanha tenta inscrever o país de 23 milhões de habitantes nas reuniões, baseando-se no princípio da universalidade do direito à saúde de qualidade: do mundo em relação aos sistemas de Taiwan, e o da população taiwanesa com o mundo, porém sem grandes sucessos, como os dados demonstram, uma vez que rejeição devido aos motivos políticos ainda é evidente. Nessa ótica, o Taiwan Can Help continua buscando angariar apoio internacional à sua causa, a notar a campanha que organizou a doação de máscaras a países, em abril de 2020, contabilizando 10 milhões para Estados Unidos, União Europeia e outros aliados, em um claro movimento de ajuda humanitária.

A comunidade global precisa responder aos problemas de saúde globais, construir um regime para isto e alimentar o conceito de Saúde Global no mundo, principalmente após as dificuldades mostradas pela COVID-19. À luz da pandemia atual, e dos presentes problemas de saúde e sanitarismo, esse regime não pode deixar de integrar um grande vencedor da pandemia atual, como exposto no estudo. Taiwan, uma nação não reconhecida pela ONU, possui grande contribuição efetiva, a partir de conhecimentos de controle de epidemias internacionais, para as organizações internacionais do mundo e para o regime internacional de saúde que tende a se desenvolver. Pode se considerar incluir essa nação, possivelmente, como Membro Associativo do órgão filiado da ONU e não Membro oficial, de modo a superar parcialmente as rivalidades políticas com a China. Para isso, é de se ter por base a própria Carta do órgão das Nações Unidas a qual possui como um de seus tópicos: “A conquista de qualquer Estado na promoção e proteção de saúde é de valor para todos”, ou seja, todos os cidadãos do mundo, ameaçados pela contaminação iminente.

Referências Bibliográficas

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